O Bodo é uma celebração em honra do Mártir S. Sebastião, que é o santo protetor contra a fome, a peste e a guerra, e o padroeiro da freguesia do Colmeal, concelho de Góis. Com a presente descrição algo pormenorizada, mas não exaustiva, da celebração na freguesia visa-se registar o estado da tradição na atualidade, para que os vindouros possam, um dia, identificar as alterações que entretanto sofreu. Como se verá, a tradição é dinâmica. Pretendendo que este texto de primeira aproximação ao assunto também o seja, fico à espera de contributos para o completar ou corrigir. O Bodo data de tempos imemoriais, quando a população prometeu ao santo todos os anos dar um bodo aos pobres se ele a livrasse de uma epidemia que então grassava. De acordo com outro registo, os bodos começaram por ser um tributo pago pelos ricos como penitência e instrumento de apaziguamento daqueles que exploravam no dia a dia. A tradição do Bodo existe em muitas outras freguesias da região e do País, variando apenas quanto ao formato e aos produtos que integram a oferenda. A longevidade do evento prende-se com o facto de a tradição ter sabido evoluir ao longo do tempo, perdendo as funções iniciais, mas ganhando outras. Prende-se também com a superstição, que está presente quando se evocam os males sofridos pelas populações que ousaram interromper a prática.
O Bodo realizava-se no dia de S. Sebastião, a 20 de Janeiro. Presentemente, na freguesia do Colmeal e outras, costuma realizar-se no fim de semana mais próximo dessa data, para viabilizar a participação dos naturais e oriundos das aldeias residentes na Grande Lisboa e dos ativos empregados. A demonstrar a abertura da tradição à mudança, sem a qual não sobreviveria, esta alteração reflete a influência da mobilidade da população e da evolução do trabalho por conta própria, na agricultura de subsistência, para o trabalho assalariado que hoje ocupa a maioria dos empregados.
A organização e os custos do Bodo são assumidos, individualmente ou em grupo, pelas aldeias da freguesia em regime de rotatividade. O Bodo funciona assim e, desde logo, como afirmação de pertença e fator de identidade e coesão. Este ano, os promotores do Bodo, que teve lugar a 22 de Janeiro, foram as localidades de Ádela e Açor, sendo a sequência a seguinte: Colmeal, Sobral, Saião e Salgado; Ádela e Açor; Soito; Malhada e Carrimá; Aldeia Velha e Loural (em esperança); Carvalhal. Existe um mordomo, que é responsável pela organização do evento e pela angariação de fundos tendo por base um valor estimado, mas as famílias podem contribuir com mais ou menos. Já pouco se cultivando, os produtos do bodo são adquiridos no mercado.
Como muitas outras festividades na cultura judaico-cristã ocidental, o Bodo incorpora uma vertente religiosa e uma profana, que se interpenetram. A primeira é constituída pela missa, que inclui a bênção dos alimentos, e a procissão; a segunda, por um convívio, onde se processam a distribuição e o consumo imediato desses mesmos alimentos. No âmbito da acentuada laicização para que a sociedade portuguesa tem evoluído, a componente convivial e lúdica tem vindo a ganhar expressão, e a ser objeto da preferência dos participantes.
A bênção costuma ser a meio da missa, mas este ano foi antes, talvez porque os alimentos se encontravam no edifício da Junta de Freguesia, devido às obras na igreja. A procissão, que se fazia há uns anos circulando três vezes à volta da igreja, vai agora até ao largo, no centro da povoação. Participam nela mais mulheres, que já não é possível fazer alinhar nas duas filas direitinhas de antigamente. Pelo caminho reza-se e canta-se, sendo o passar do tempo percetível no andamento e no timbre das orações e cânticos.
O andor de S. Sebastião é transportado por homens da terra ou terras promotoras do Bodo. Continuando a ser evidente que enquanto há homens não se confessam mulheres, a exclusividade masculina resulta do facto de a procissão levar apenas a imagem de S. Sebastião. Na procissão da Festa anual, que integra vários andores, e na condução do próprio Bodo já se veem mulheres, em linha com a maior participação na vida pública que têm vindo a conseguir. Não raro os homens que transportam o andor, entre os quais se conta o mordomo, são colmealenses filhos e netos dos que um dia partiram à procura de uma vida melhor. Esta particularidade espelha, uma vez mais, o progressivo ajustamento da tradição à mudança e uma realidade social feita de presença e ausência, de forte ligação às origens, de vai e vem, de interação entre a cidade e a aldeia, o que só pode ser auspicioso para a freguesia. A procissão medeia o religioso e o profano, fazendo a passagem para a vertente convivial e festiva.
SOCIABLIDADE E PARTILHA: DO PASSADO PARA O FUTURO
O convívio, ao qual o santo preside velando do seu andor, começa com o leilão do pão benzido que é costume oferecer a santos existentes na igreja, revertendo o lucro a favor da paróquia. Em geral, quem compra o pão fá-lo para o partilhar com os familiares e amigos que não puderam comparecer, o que remete para o simbolismo do pão nosso de cada dia e, talvez, para a memória do sabor perfumado e tenro do pão que esporadicamente alguém trazia da vila, para adoçar a boca e o coração à família. A propósito, é costume guardar um bocadinho do pão benzido, que fica duro, mas não bolorento, como proteção contra as calamidades.
Seguidamente, passa-se à distribuição e ao consumo dos alimentos, continuando os grupos a conversar e, este ano, um jovem a tocar concertina, para mais tarde alguns dançarem. Predominam os homens, a sugerir desigualdade na divisão do trabalho doméstico, que terá retido mulheres em casa.
Cada participante que o deseje recebe um pão benzido e um punhado de figos secos, por vezes, duas ou mais dozes, dependendo das encomendas. Os figos apresentam-se agora dentro de um saquito de plástico (não vá a ASAE aparecer!), enquanto o pão há quem o continue a levar na mão, por ser mais seguro ou ecológico! Pela mesma razão ou por ser mais conforme com a tradição, há senhoras que trazem um saco de retalhos ou croché.
Sobre a mesa, há pão benzido, chouriço cru ou assado, queijo ou produto afim, vinho, cerveja, refrigerantes e água, que são consumidos à discrição, consumindo e reproduzindo energia e coesão. Para além destes géneros, que configuram o formato oficial do Bodo sendo custeados pelos respetivos fundos, é frequente a presença de iguarias oferecidas por indivíduos ou grupos, mediante generosidade ou promessa. Tem havido torresmos fritos na hora e, no último, estavam deliciosos as fatias de carne de porco e os bolos secos à moda antiga confecionados pela Luísa e pela Catarina (Ádela), os sonhos de abóbora especialidade da Maria Alice (Açor) e as filhós invejáveis da Miquelina (Loural/Colmeal). Também havia uma fartura de bolos de pastelaria. A D. Silvina, viúva do senhor Sebastião, que fazia anos no dia do santo, continua a oferecer café e bolos, agora em sua lembrança. Pessoalmente, como muitos outros participantes sobretudo senhoras, não dispenso aquele café quentinho, que tomo pensando no homenageado e na minha avó Leopoldina, cujo café o da D. Silvina me recorda.
Tanto quanto os mais velhos se lembram, o bodo consistia na oferta a cada participante de um pãozinho, uma mão cheia de figos (castanhas piladas, em tempos mais recuados) e um copo de vinho. Era pouco, mas não negligenciável, considerando que eram géneros de que muitos não dispunham e que o pãozinho tendia para ser em trigo, o que fazia dele um luxo, comparativamente com a broa áspera de todos os dias. Por isso, mas também porque o evento ocorria na época menos ocupada do calendário agrícola, o Bodo atraia multidões, sendo necessário controlar os acessos ao recinto junto à igreja, de modo a impedir os mais espertos, nomeadamente crianças e jovens, de o receberem duas vezes. Recentemente, alguém recordava com mágoa o facto de, em criança, ter sido acusado sem proveito dessa façanha, ao contrário de outros que a recordam divertidos, ainda a saborear o gosto inolvidável do pão e da malandrice. Menos significativamente e com objetivos distintos, o Bodo continua a ser muito procurado, sendo evidente a atração das populações pelo reviver das tradições que fazem parte da cultura e do imaginário locais. No ano em curso, para além dos colmealenses, havia muita gente de localidades e concelhos limítrofes e distantes, destacando-se um grupo de forasteiros que muito contribuiu para animar o evento.
Embora os tempos que correm pareçam provar o contrário, reza o ditado que não há fome sem fartura. Foi o que aconteceu com o Bodo, que adquiriu uma abundância que inicialmente não tinha. Para esta evolução contribuíram, influenciando-se mutuamente, a redução drástica do número de participantes e a melhoria dos níveis de vida. A primeira ficou a dever-se ao êxodo da população associado à recessão demográfica que provocou, especialmente a partir de meados do século passado; a segunda, isto é, a melhoria dos níveis de vida, à evolução estrutural global e ao aumento do rendimento das famílias, que a deslocação para Lisboa e outras paragens permitiu. Com menos fregueses e mais recursos, é natural que as diminutas merendeiras de antigamente se tenham transformado nos pães que agora muitos levam em duplicado, ao mesmo tempo que o simples copo de vinho, símbolo de alegria e fraternidade, redundou no repasto que acompanha o convívio. Sobram sempre géneros e dinheiro, que reverte a favor do mártir. Antes, era redistribuído pelos ofertantes.
O Bodo é uma manifestação de religiosidade que se transformou em tradição. Ao longo do tempo, perdeu as funções que estiveram na sua origem e ganhou outras, mantendo o ritual, que desapareceu noutros bodos, de distribuir, receber e levar o pão para casa. Na encruzilhada dos tempos, práticas e valores que traduz, S. Sebastião nos guarde das fomes que não são de pão, a que o bodo poderá ter de responder. Mudando e adaptando-se de novo.
O último Bodo teve lugar de tarde, creio que pela primeira vez. Tratou-se de uma decisão não isenta de conflitualidade, que a falta de clero na diocese explica. Quando já se arrumavam as muitas sobras, e a escuridão precoce do Inverno se tinha abatido sobre o Colmeal, ainda um grupo cantava, usando duas tábuas como instrumento musical:
“Mulher gorda não me convém,
(….).
Mulher magra não me convém,
(…) “
“Canta, canta, amigo canta,
Vem cantar esta canção.
Tu sozinho não és nada,
Juntos temos o mundo na mão.
(…) “
Lisete de Matos
Açor, Colmeal